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terça-feira, agosto 05, 2008

Tanto ruído no interior deste silêncio: são as vozes dos outros a falarem em mim, pessoas de quem gostei, pessoas que perdi, gente que tenho ainda. Não me parece que herdei muito dos meus pais, dos meus avós: algumas coisas mais ou menos superficiais mas lá no fundo nada. Princípios, claro. Regras. O resto, quase tudo, fiz sempre sozinho. E estive sozinho nos momentos mais difíceis da vida, que sofri na carne como um cão: aquilo que, destilado, aparece nos livros, que são o itinerário de uma aprendizagem e de uma dor, a certeza da vida redimir a morte, da necessidade da alegria, de uma paz intransigente conquistada a pulso. A humilde capacidade de admirar as pessoas, respeitá-las, que tanto tempo levei a conseguir. Olhar nos olhos o que um ano destes não serei. Custa-me a ideia de não escrever, um dia. Do mundo continuar sem mim. De perder corpos, calor: o que ganharei em troca? O meu pai foi-se embora há quatro anos: percebo hoje que existia entre eu e a morte, a defender-me sem saber que me defendia e que a partir de então, quando ela tocar à campaínha, é a minha vez de abrir a porta: não quero chegar à maçaneta a tropeçar, quero mostrar-lhe a casa limpa e pronta. Dizer a quem se achar ao meu lado – Eu já venho e descer as escadas. Não se incomodem, não se levantem: sou capaz de descer as escadas sem ajuda até vários palmos abaixo da terra. Espero que haja sol nesse dia, um arrepio alegre nas árvores. Não se incomodem que eu já venho. Sentir-me-ão nos objectos, deixarão de sentir-me a pouco e pouco à medida que a saudade se atenua. Continuarei aqui através dos meus livros, na altura em que ninguém meu conhecido sobrar. Ficam retratos, claro, reflexos pálidos do que fui. Depois nem sequer os retratos, um nome apenas. Páginas e páginas que não imaginarão o que me custaram, a luta permanente, a dificuldade em limpá-las. Tem de passar-se as passas do Algarve para dar prazer ao leitor. Espero que Deus me conceda acabar três ou quatro textos, deixá-los prontos para que outros construam por cima, como eu construí por cima dos que me precederam. Se alguma dignidade de homem tenho deu-me a Arte. Hipócrates: a Arte é longa, a Vida breve, a Experiência enganadora e o Juízo difícil. O meu pai tinha isto num rectângulo de papel, no seu gabinete do hospital. A Arte é longa, a Vida breve. Se te sentes desfalecer pega na tua própria mão para ganhares coragem. Talvez dê resultado. Tentaste. É noite agora, corri as cortinas, estou sozinho. Faltam-me os meus amigos, falta-me o mar. Estantes cheias de lombadas, esta mesa. A esferográfica que lá vai andando aos tropeções. Os cigarros são a água com que empurro a comida das frases. Gostava de deixar de fumar, uma escravidão estúpida. Eis-me sozinho rodeado de vozes. Ninguém me pode ajudar a fazer isto. Se cair do trapézio a responsabilidade é minha e o aleijar das costas também. Conseguirei agarrar o próximo, falharei? Não me interessa narrar histórias, contento-me em abrir o coração. A minha mãe fez noventa anos em dezembro: limita-se a esperar numa cadeira. No que me respeita não vou esperar numa cadeira: a mão desenhará letras até ao fim. Esta não é uma crónica melancólica: é a obstinação do ofício que pratico desde que me conheço, afastando sempre o que o estorvava. Pagam-me para fazer o que faria de qualquer maneira e portanto sou uma criatura feliz. Na altura em que a morte, de que falei há bocado, chegar, já a venci. Amanhã na batalha pensa em mim: título do meu amigo Javier Marías. Hoje na batalha penso em vocês, não deixo de pensar em vocês. Somos tantos, cada um de nós é tantos.

António Lobo Antunes

Revista Visão, 31/7/2008