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terça-feira, março 13, 2007



Me fiz gente se é que sou * naquela casa de porta azul que o tempo foi tornando menos azul... Lembro-me do esforço supremo, em bicos de pés, para tentar sem resultado tocar à campainha. Depois o esforço desapareceu e bastava esticar um dos braços para alcança-la e como gostava daquele som, familiar, protector, e do grito ouvido longínquo Já vai! e da espera com a impaciência de jovem, sem tempo a perder, com a cabeça cheia de vidas e mundos ainda por conhecer. O avô foi o primeiro a partir, inventei um teste, que teria que estudar muito e não fui ao seu funeral. Fechei a porta e fiquei no seu quarto a despedir-me do seu cheiro, a acariciar a sua roupa, o seu chapéu. Depois a avó, começou a ficar esquecida e confusa. Falava com as personagens das telenovelas. Achava estranho morrerem e renasceram logo de seguida numa outra série de televisão. Vestia-se, penteava as longas cãs, fazia uma longa trança e prendia-a enroladinha na cabeça. Os seus olhos azuis já não brilhavam. Estavam foscos. As mãos pequeninas continuavam agéis. Mas a avó já vivia numa realidade feita de pedaços de um passado rico mas já todo enterrado. A tia levou a avó e fechou a casa azul. A nossa casa. A casa que fazia de nós a família que foramos. A avó morreu. Não fui ao seu funeral. Fiquei sozinha com a dor e um bebé que era para a sua bisavó o seu filho Vasquinho, que morreu bebé. Hoje quando visito a casa choro por todos, pelas crianças que cresceram e correram mundo, pelos adultos que continuam as suas vidas e pelos que partiram e deixaram fechar a casa.

* Me fiz gente se é que sou, Agostinho da silva

3 comentários:

Gioconda disse...

Esta historia fez-me lembrar uma outra porta que está exactamente fechada assim com uma corrente... so que é uma porta vermelha. Um dia destes tiro-lhe uma fotografia e mostro-te. La também ficaram fechadas as minhas recordações de menina, ai como me fizeste agora reviver tanta coisa que não volta... o avô que também partiu ha 20 anos, a avó que partiu a sete... a madrinha que tive que tirar daquela casa a força e levar para a minha... ai apetece-me escrever.... vou ali para um cantinho relembrar os meus tempos de menina....

Aragana disse...

Eu também não vou aos funerais.

augustoM disse...

Um texto bem escolhido, demonstrativo da sua sensibilidade. O homem com quem eu mais gostaria de ter falado foi Agostinho da Silva. Diversas vezes estive para lhe ir bater à porta, mas faltou-me sempre a coragem, e foram tantas as vezes, que ele não esperou mais, e me deixou desamparado com este desejo.
Um abraço. Augusto