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sexta-feira, outubro 28, 2005

Mercedes e Clarisse

Pouco depois de Mercedes nascer houve um sismo na zona norte de Lisboa. O bebé foi embrulhado num lençol e trazido para a rua pela irmã Clarisse, de pouco mais de nove anos de idade.
Mercedes soube pela mãe o que aconteceu naquela noite, alguns anos mais tarde. Um dia perguntou-lhe “porque é que a mana não gosta de mim como das outras crianças?”, a casa sempre cheia de crianças que ela tratava como se fossem suas, a mãe paciente contou-lhe a afeição, a ternura e doçura com que Clarisse sempre a tratou, de como cuidou dela na convalescença da sua cesariana, dizia “deixa mãe, deixa-te estar, eu trato da mana...

Mercedes quase não acreditava que Clarisse a amara e pudera alguma vez demonstrar esse amor. Só lembrava o silêncio da irmã e a quase idolatria que sentia por ela. Recordava o seu amor pelas palavras e como ela sempre lhe explicava o seu significado. Ficava fascinada com o seu saber enciclopédico. De como vestia às escondidas as suas roupas que Clarisse proibira determinantemente. Como gostava da música que ela ouvia, principalmente Sérgio Godinho.


Depois a vida cuidou de as afastar mais ainda. Chegaram à idade adulta sem se conhecerem, nem manifestamente querendo. Cheias de medo de olhar nos olhos uma da outra e ver o mesmo: o amor que sentem, o silêncio do que não se diz...

Uma vez Mercedes arrastou a irmã e a mãe para uma sessão de terapia familiar. Vomitou durante uma hora palavras caladas, esquecidas, cheias de teias de aranha. Estava a entrar nos trinta e a vida de pernas para o ar. Tinha acabado de engravidar. Não tornaram. A mãe e irmã choraram, debateram-se e recusaram-se a voltar.

Quando o filho de Mercedes nasceu, não teve ajuda de ninguém, excepto do marido. Os dois primaros tiveram que se desembaraçar sozinhos com aquele recém-nascido minúsculo, que nem três quilos pesava.

O afastamento foi inevitável, deixaram de ser a família que nunca foram, mas que Mercedes sempre aspirou, para se reunirem apenas no Natal, comer o bacalhau e trocar presentes.

Mercedes faz quarenta anos nesse dia. O filho com dez anos está na escola, frequenta o quarto ano do ensino básico. Clarisse fará cinquenta daqui a dois dias e a mãe convidou toda a família para uma feijoada. Mercedes aceita, muito satisfeita. Irá conhecer o novo namorado da sobrinha Caetana, que se divorciou há dois anos. Ainda não tem trinta anos e já vive o terceiro divórcio, diz que continua a acreditar no amor e no casamento.



Há muito tempo que não se juntam. Falam esporadicamente ao telefone e já nem o Natal os reúne. Por nenhuma razão especial, nenhuma zanga, nada. Mercedes não conseguia explicar aquele desprendimento familiar.

Mas porquê então aquela lembrança recorrente: os domingos de manhã, na cama grande da mãe, as três a brincar, a conversar, Mercedes pedia: “mãe, conta de novo aquela história da Clarisse, quando andava nas freiras e fez aquilo à madre...”. Não se cansava de as ouvir. A mãe contava sempre tantas diabruras de Clarisse. Mercedes sempre foi mais obediente. Não era teimosa e cumpria calada as ordens da mãe.

1 comentário:

Concha Pelayo/ AICA (de la Asociación Internacional de Críticos de Arte) disse...

Chonina. La vida es asombrosa. Cuentas las cosas con una gran naturalidad. Eres un magnifica recreadora de situciones. Un beso.