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quarta-feira, novembro 30, 2005

Matilde

Matilde anota, na triste quietude da sua vida, com carinho, os dias em que faz amor com Luís na ilusão de saber o dia exacto em que irá conceber. Escolhe nomes por sob o silêncio de Luís. Descobriu pasmada o gosto deste por nomes começados pela letra erre.

Somos estranhos para os outros não mais que para nós mesmos. Somos um eco remoto do que sentimos.

O pai do Luís vive o fim de um negócio que não correu bem. O filho tenta desenfreadamente ajudá-lo, sem alvitrar, sempre preocupado com a dívida jamais paga. Como dizer ao pai sem falar no passado que é o homem que é graças a ele. A dedicação exaustiva salvou-o.

Matilde tem dificuldade em digerir os silêncios do marido. Quando vê entrar o Fernando lê-lhe nos olhos o desespero e sabe que mais uma vez Luís ajudará o pai a um prolongamento forçado de um negócio moribundo.

O tempo passa e Matilde continua a tomar notas no velho bloco, com capa encarnada. Todos os finais do mês a mesma coisa. “Luís, não foi ainda este mês”. Luís suspira calado. Não aguenta a sua ansiedade. Matilde trocou o anti-depressivo e a psiquiatra por uma tentativa de engravidar.

Tem ambos 34 anos, é a altura mais que certa. Quer a sua família. Matilde nunca conheceu o pai. A mãe vive em Torino, Itália, e a relação entre as duas estabilizou, falam pelo telefone, mas não se vem há quatro anos. Só tem Luís e os sogros, que tão bem a acolheram neste país estranho.

Sentiu-se agoniada, tonta, com quebras de tensão. Já não podia ser apenas do medicamento. Tinha feito o desmame como a psiquiatra lhe dissera.

Passou pela farmácia a caminho de casa. Voltou atrás e entrou, um pouco envergonhada, com medo que o empregado, que a conhecia pela assiduidade, lhe pergunta-se directo se queria um teste de gravidez. Começou por pedir uma embalagem de aspirina, pediu um conselho para um xarope para a tosse e depois como se quase se esquecesse o teste.

Saiu da farmácia com o saco dos medicamentos na mão, dedos bem firmes a segurar. Percorreu os poucos passos que a separavam da sua habitação e a distância pareceu-lhe desmedida. Subiu os três andares quase em corrida e entrou em casa. Pendurou o casaco e a mala à entrada no bengaleiro e dirigiu-se de imediatamente à casa de banho, sem largar o saco de plástico.

Fez o teste. Dominou-se e deixou-o poisado no lavatório. Foi mudar de roupa. Parecia um contra-senso mas agora estava calma. Seria como fosse.


Matilde está no quinto mês de gestação e acabou de fazer uma ecografia. Agora sabem que esperam uma menina. Uma Vitória para tornar diferentes os seus dias. O Luís calou o desencanto e mostrou-se feliz. E estava muito, mas talvez ficasse mais ainda se fosse o tão desejado menino, para lhe fazer companhia nas idas ao estádio do Glorioso.

1 comentário:

graziela disse...

a vida é tal qual tu a escreves. uma estória com fim triste, outra com um fim feliz.
abraço,querida
graziela