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quinta-feira, julho 14, 2005

Alice dos rissóis

Dona Alice fazia rissóis de camarão e croquetes de carne que vendia há quase uma década. Era conhecida, não só na sua rua, mas também na freguesia onde fornecia alguns estabelecimentos, cafés e restaurantes. Também vendia para particulares e recebia encomendas para festas, casamentos, baptizados. Era reconhecida pela excelente qualidade final dos seus produtos, para além disso era muito agradável, sempre de sorriso aberto, sempre com uma palavra amiga para todos.

Foi ficando a Alice dos rissóis, alcunha pela qual responde ainda, tanto tempo passado. Ainda há quem se lembre dos seus pastéis embora não os faça mais. Fazia-os para ajudar o marido. Tinham acabado de comprar o apartamento, tinham que pagar à sua irmã a parte deles. Inicialmente a casa fora alugada pelos dois casais. Quando foi posta à venda acordaram com a irmã e o cunhado darem-lhe um valor e adquirirem eles a casa. E assim se fez. Umbelina e Manuel com o dinheiro compraram um terreno nas redondezas e construíram a habitação, onde hoje vive ainda a sua única filha com o marido e os dois netos.

Júlio, o marido de Alice, era condutor nocturno de táxis, com praça no Cais do Sodré, onde conhecia todos os bares e todos os “operários”...
Era um noctívago, alfacinha nascido na freguesia do Socorro e criado em Carnide. Fumava quase três maços de tabaco, Porto e muito mais tarde substituído por SG Filtro, e bebia uma média de 8 cafés por dia. Desde que começara a conduzir o táxi, tinha deixado de jogar no Palmense, onde ficara na história do clube, conhecido até nas ex-colónias, nomeadamente em Moçambique, durante a Guerra Colonial, como o guarda-redes mais destemido a sair às bolas. Completamente louco! “Ai, que o gajo matasse!”, repetia o público assistente, cada vez que Júlio voava em direcção à bola ou aos adversários, aterrando na terra batida, sem qualquer protecção.
O Agulhas. Desde criança, ainda sem ir à escola, sabia contar e conhecia o dinheiro e tudo vendia, para ajudar o parco orçamento familiar, agulhas, alfinetes, de nada fazia dinheiro, que dava inteirinho à mãe Ermelinda, que adorava. Dora a irmã gémea às vezes para o aborrecer conseguia tirar-lhe as moedas que escondia no quarto de cima, o dos pais, por baixo do enorme relógio que batia as horas.


Tentaram ligar a Alice, no dia anterior, do hospital, tinham desistido do Júlio, continuo a achar que ele é que desistiu de nós, mas como ela tinha estado todo o dia fora acabaram por dar a notícia ao filho, pois era o outro telefone para "estados inovadores numa situação estagnada". Coube ao filho receber a má nova.





O Júlio levou o que sobrava de quase nada do todo que fomos. A nossa família. Bem ou mal era a nossa família...


A vida tem razões que queremos desconhecer, ignorar, desvalorizar. Teremos medo das mensagens ou de ser apenas?

Evitei vê-lo na agonia final. Não fazia sentido. Era só uma imagem desfocada descolorida. Nunca mais voltou a olhar-nos. Nunca mais tivemos de tentar entender o seu balbuciar...

O fim é irredutível e dolorosamente real...

Aos poucos os passos voltaram a calcorrear os caminhos e reatou-se a mesma vida com a memória mais pesada. As mortes deixam um peso que só se nos torna aceitável depois de o ter carregado.
Renasce aos poucos de novo a fé em dias felizes.

2 comentários:

Carlos de Matos disse...

... o comentário vai neste post, como poderia ir noutro qualquer!

... espantas-me com a facilidade com que descreves situações banais, as mais difíceis de relatar!

... e pelas horas das colocações, tanto estás bem de tarde como pela noite dentro!

... continua!
... é uma obrigação!
... talvez começares a fazer um esquiço para um livro de contos!

... Xi

Jorge disse...

Será que a dita senhora fez rissóis que eu um dia comi?
De todo o modo cada vez me surpreendes mais!
Acabas de postar um belíssimo conto-crónica. Que saudável inveja!
Parbéns.